Coleção: # bandeiras

"As bandeiras de Guilherme Valverde convidam à celebração, à festa, à multiplicidade, mas também a uma outra dimensão do candomblé, a do território."
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Série por: Gui Valverde

"Quando buscamos referências sobre a história da bandeira da Bahia pode acontecer de nos confundirmos. Seu criador, Deocleciano Ramos, um republicano, professor da Faculdade de Medicina da Bahia, apropriou-se de diversos movimentos revolucionários das mais variadas matizes ao concebê-la em 1889: as cores da Revolução Francesa e seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade; o triângulo da Inconfidência Mineira e da maçonaria; a Sabinada; as linhas da bandeira dos Estados Unidos; a Revolta dos Alfaiates. Tudo cabia no símbolo que nascia. A intenção era claramente universalista e plural.


Todavia, como se pode perceber pensando com mais vagar, por trás de uma aparente multiplicidade e mesmo de diversidade, havia uma prevalência de cores, traços e modelos que remetiam majoritariamente à Revolução Francesa e ao processo de independência dos Estados Unidos. Portanto, podemos deduzir, a bandeira incorporava sobretudo elementos simbólicos dos colonizadores em detrimento dos colonizados, sem falar dos escravizados, apesar do triângulo também remeter à Conjuração Baiana, que, entre outros motivos, pedia o fim da escravatura e da escravidão. Não seria a primeira nem a última vez que uma singular dialética nacional era posta em prática.


O mesmo símbolo, tornado oficial pelo Estado, cuja capital, Salvador, é a cidade mais negra do Brasil e a mais negra fora da África, homenageava dois países que se tornariam símbolos do colonialismo e do imperialismo, da violência e do racismo, apesar da escolha do Dr. Deocleciano mirar ideais de liberdade. Não é um tema simples, sobretudo pensado hoje, quando os estudos decoloniais trabalham na direção de uma revisão histórica quase sempre muito acertada de toda essa herança europeia, mobilizada muitas vezes com o intuito de apagar traços africanos definidores de nossa formação cultural.


É neste ponto que a série bandeiras de Guilherme Valverde se inscreve. 


Em estética é comum pensarmos a partir de duas estruturas: a forma e o conteúdo. É disso que se trata seu novo trabalho. Num lance ousado e ao mesmo tempo iconoclasta, o artista subverte o símbolo oficial, o decompõe, apropria-se da forma e implode seu conteúdo original abrindo caminho para a celebração dos seus inkisis, dos orixás que norteiam o candomblé e que tem na Bahia seu berço a partir do qual esta religião encontrou seu lugar diaspórico litoral e sertão adentro do imenso Brasil. 


Hoje o candomblé representa parte significativa da resistência do movimento negro contra aquela que podemos considerar a maior chaga aberta do país, o racismo. Ao mesmo tempo em que líderes religiosos são perseguidos e assassinados em nome de um moralismo obtuso, o significado dessa permanência é multiplicado; é o que simbolicamente propõe o trabalho de Guilherme Valverde, multiplicar, balançar no mastro mais alto a intensidade das representações religiosas plenas de orgulho e potência.


A miríade de cores e símbolos dos orixás é multiplicada na escala original da flâmula oficial, criando uma representatividade impactante, múltipla, no limite ofuscante de onde emana um profundo orgulho por uma de nossas maiores contribuições para a ampliação das perspectivas em um mundo cada vez mais extremista e autodestrutivo. 


As bandeiras de Guilherme Valverde convidam à celebração, à festa, à multiplicidade, mas também a uma outra dimensão do candomblé, a do território. Fincar a bandeira é uma imagem clássica de dominação de territórios, da costa brasileira ao oeste estadunidense, do litoral africano à América Central, em qualquer lugar onde as bandeiras foram fincadas nos processos de dominação isso veio acompanhado da dizimação e da escravização dos povos.


Ao fincar a bandeira dos orixás, o artista nos faz lembrar da importância de resguardar esses territórios sagrados do culto afro-brasileiro, nos quais, diferente da visão soberana dos Estados-Nação, não entramos apenas em um lugar de reencontro com as forças da natureza, mas sobretudo num território onde todas as pessoas são bem-vindas."


Henry Burnett